TRATADO COISLINIANO
O Tratado Coisliniano está na segunda parte do manuscrito n.120 da coleção Coislin da Bibliothèque Nationale de Paris, de onde provém seu nome. A redação deste manuscrito é assinalada por Devreesse e outras autoridades como datando do início do séc X, mas a análise dos extratos, sumários e comentários aristotélicos nele compreendidos fazem crer que o seu conteúdo remonta ao séc. VI, pois reflete o ensino filosófico da época, sobretudo as partes comentando o Isagoge de Porfírio, que ocupam a maioria das páginas. O Tratado Coisliniano ocupa as folhas 248v, 249r e 249v do manuscrito, não possui título nem autoria. É provavelmente uma epítome dos conteúdos do Livro II da Poética de Aristóteles, mas pode ter sofrido influências dos ensinamentos retóricos posteriores ao Liceu (porém, como a influência é recíproca, não há como distinguir a proveniência com exatidão).
Para esta tradução, servi-me principalmente dos materiais contidos no estudo de Richard Janko, Aristotle On Comedy, Towards a reconstruction of Poetics II; o texto por ele estabelecido, sua tradução e, sobretudo, as pranchas com reproduções fotográficas das três páginas do manuscrito. Também me foi útil a edição de J. Vahlen de 1885, reeditada em 1964, que se atém mais estritamente a edição do manuscrito, sem a quantidade de correções de Janko, e fiel à disposição gráfica do mesmo. Minha tradução aproxima-se mais do texto grego deste último, sendo bastante diferente da edição feita por Janko, por dois motivos principais: primeiro, meu objetivo, diferente do dele, não é reconstruir aqui o texto original de Aristóteles, de modo que me eximi da quantidade de correções e adendos que Janko faz, usando manuscritos adjacentes (sobretudo os Prolegômenos dos manuscritos das obras de Aristófanes, editados por Koster, 1975) – minha tradução visa tão só o manuscrito do Tratado; segundo, a consulta às pranchas dos manuscritos permitiu-me algumas construções diferentes, sobretudo na hora de interpretar em sintaxe dissertativa os freqüentes diagramas visuais. Fora esses dois motivos, as distâncias decorrem apenas das razões de sempre: línguas e compreensões diferentes.
Apesar de visar tão somente à tradução do Manuscrito, aceitei, para a compreensibilidade do texto, algumas poucas correções e adendos propostos pelo estabelecimento de Janko e outros, os quais estão devidamente assinalados em notas de rodapé. Tomei a liberdade também de acrescentar subtítulos às divisões propostas por Janko.
Rio de Janeiro, 23 de novembro de 2003
Fernando Santoro
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{I e II. Gêneros Literários}
Da produção literária, uma parte é não mimética, outra parte é mimética.
A literatura não mimética reparte-se em investigativa e educativa, e esta(s) em didática e especulativa.
Já a literatura mimética reparte-se, de um lado, em narrativa, de outro, em dramática, i.e. que exprime-se por ações, a qual divide-se ainda em comédia, tragédia, mímica e sátira.
{III. Cátharsis}
A Tragédia afasta as afecções da alma relativas ao medo por meio de compaixão e terror, e [que] almeja estabelecer uma proporção do medo; tem como mãe a dor.
{IV. Definição da Comédia}
Comédia é uma imitação de uma ação risível e desprovida de grandeza , acabada, separada em cada uma das partes no tocante aos formatos; representada por atores e também por meio de narrativa, consumando pelo prazer e pelo riso a purgação destas afecções; tem como mãe o riso.
{V. Causas do Riso}
Mas o riso é gerado – seja pelas falas – seja pelas ações.
1) Por homonímia
2) {Por} sinonímia
3) {Por} prolixidade
4) {Por} paronímia -
4a) de prótese e aférese
4b) {de} diminutivo.
4c) {de} trocadilho – com voz, – e com coisas de gênero semelhante.
5) {Pela} forma de falar
{VI. Riso proveniente de ações}
O riso (surge) a partir das ações:
1) Desde a assimilação, que se usa para o pior ou melhor
2) Desde o engano
3) Desde o impossível
4) Desde o possível e incoerente
5) Desde a quebra de expectativa
6) Desde a caracterização chula das personagens
7) Desde o uso de danças grosseiras
8) Quando alguém, tendo a possibilidade, deixa de lado o que é melhor e toma para si o que é pior
9) Quando o discurso é desarticulado à medida em que também não tem coerência alguma.
{VII. Ênfase}
A comédia difere da injuria, porque, de um lado, a injuria expõe abertamente os defeitos salientes, enquanto aquela precisa da chamada "ênfase".
{VIII. Bufão}
O bufão busca escarnecer das falhas da alma e do corpo.
{IX. Symmetria}
Deve haver uma proporção do terror nas tragédias e do riso nas comédias.
{X. Aspectos da Comédia}
Aspectos da comédia : enredo, caráter (das personagens), pensamento, elocução, canto, espetáculo.
{XI. Enredo}
Enredo cômico é aquele que tem sua construção com ações em torno do risível.
{XII. Personagens}
Personagens característicos da comédia : os iconoclastas e também os irônicos e os fanfarrões.
{XIII. Pensamento}
Há duas partes do pensamento : opinião e prova. {Há cinco provas} : juras, pactos, testemunhos, confissões, leis.
{XIV. Elocução}
Elocução cômica é comum e vulgar.
O poeta cômico deve atribuir às personagens a língua pátria das mesmas, mas na língua local dele.
{XV. Canto & Espetáculo}
O canto é uma particularidade da música, desde a qual deverá receber as bases independentes.
O espetáculo, com grande utilidade para as atuações dramáticas, sustenta a harmonia.
{XVI. Aspectos}
O enredo e a elocução e o canto são observados em todas as comédias, mas pensamentos e caráter e espetáculo em <não> poucas.
{XVII. Partes da comédia}
Há quatro partes da comédia : prólogo, intervenção coral, episódio e êxodo.
1) Prólogo é uma parte da comédia que vai até a entrada do coro.
2) Intervenção coral é o canto cantado pelo coro, quando tem tamanho suficiente.
3) Episódio é o que fica entre dois cantos corais.
4) Êxodo é o que é falado no fim pelo coro.
{XVIII. Fases da comédia}
Da comédia:
1) Antiga : que se excede no risível;
2) Nova : que o dispensa e inclina-se para o sério;
3) Média : que é uma mistura de ambas.
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