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O QUE ERA PARA SER - ENSAIO SOBRE UMA NOVA LEITURA DA ESSÊNCIA

por Prof. Dra. Maria do Carmo Bittencourt Faria, Reitora/USU

Pretendemos no decorrer deste trabalho mostrar que a expressão "o que era para ser" traduz com vantagens a expressão grega tó ti en einai, largamente usada por Aristóteles em sua Metafísica em suas análises sobre a ousia. Veremos, a partir de Gilson como a leitura da Escolástica consagra a tradução da expressão por essência. Mas, tomando por base o texto de Met. VII, e as críticas de alguns autores contemporâneos sobre a s limitações introduzidas pela tradução de to ti en einai por essência, veremos as alternativas de tradução por eles propostas e de como tais alternativas ratificam de algum modo a tradução que aqui propomos. Esperamos mostrar que a expressão em português permite uma compreensão mais clara do pensamento de Aristóteles e sobre o que ele tinha em mente, introduzindo no texto da Metafísica, livro VII, a tradução proposta a cada vez que se apresente a expressão grega correspondente. Minha análise terá por fim a compreensão do sentido do pensamento de Aristóteles sobre o Ser e não esperamos autorizar uma tal tradução por análises calcadas numa abordagem linguística. Também deixarei de lado considerações sobre o porque de uma tal tradução ou tal outra ter sido preferida num determinado contexto histórico. A tradução da expressão grega to ti en einai – usada fartamente por Aristóteles no contexto de Met. VII, vem a longo tempo constituindo uma pedra no sapato de seus tradutores e comentadores. Por falta de uma palavra ou expressão que pudesse traduzir literalmente a fórmula aristotélica, a tradição fixou-se nos termos 'essência' ou em seu equivalente 'quididade', mas tal tradição é hoje em dia questionada por mais de um autor. A duplicação do verbo ser no infinito e no imperfeito causa espanto e dúvida, difícil de traduzir. Sto Tomás forjou a expressão quod quid erat esse, de onde deriva o termo quididade, mas não parece que com isto a questão tenha sido esclarecida. O imperfeito, no caso, é justificado apenas dentro da perspectiva cristã do Deus criador e do ente criado que, para ser, teria sido anteriormente concebido pelo intelecto divino. Que sentido teria isso na perspectiva grega? A questão se complica uma vez que Aristóteles não parece preocupado em oferecer qualquer justificação ou explicação a respeito.(Aubenque, 1977 p.460) Aparentemente, para ele, tal expressão não seria um termo técnico que merecesse ser definido, analisado, esclarecido, enfim. No glossário contido em Met V onde se esclarece o sentido própriamente filosófico dos termos empregados, não aparece qualquer referência a tó ti en einai. Gilson, em seu estudo sobre o vocabulário do ser em 'L'Être et l'essence' (Gilson 1972) endossa a tradução clássica. Ao retomar a história do termo 'essência' afirma que foi usado pela primeira vez para traduzir do grego ousia que não tem um correspondente latino. Nesse primeiro momento, que vai de Cícero, o primeiro a propor tal tradução a Quintiliano, a partir de quem se generaliza o uso do termo, a 'essência' responde à pergunta an sit, ou seja, indica primordialmente a existência da coisa. O termo essência seria portanto um neologismo derivado de esse. A partir do século III o termo vai progressivamente identificando-se a quididade e passa a ser usado como tradução de to ti en einai. (Gilson, 1972, p. 460) Para Gilson a identificação entre a essência, ousia, e a quididdade se evidencia pois: "la seule chose qui fasse qu'une chose soit ce qu'elle est c'est en effet sa forme, quidité ou essence". A essência ou quididade é então compreendida como causa: "l'ousia ou to ti en einai, est manifestement la première de toutes causes puisque, comme on vient de voir, étant ce par quoi la chose est ce qu'elle est, elle se trouve être, par la même, ce par quoi la chose est."(idem) Por isso justifica-se plenamente a tradução de to ti en einai por essência ou quididade. No texto 'A existência na filosofia de Sto Tomás' (Gilson, 1965) Gilson aponta para a originalidade do conceito tomista de esse que teria sido pela primeira vez assumido no sentido da existência. Aristóteles, segundo ele, ainda estaria preso a um essencialismo muito próximo de Platão. Em 'L'Être et l'essence' afirma que a ousia "le seul genre de cause efficiente dont il dispose est existenciellement si stérile que l'idée paltonicienne" e ainda: "l'ousia desitencialisée d'Aristote ne permet pas de resoudre les problèmes de l'existence (...) et ne permet même pas que s'offre l'interprétation adéquate de ce genre de causalité" ( idem pg. ) (ou seja, da causalidade eficiente). Só o pensamento cristão, graças ao conceito de criação pode dar conta da existencialidade do esse. Embora fundada sobre a reconhecida erudição de Gilson no que diz respeito à filosofia medieval, sua análise não faz justiça ao próprio texto aristotélico. Fazendo nesse momento obra de historiador mais que de filósofo, e mais, de historiador interessado a demonstrar uma tese, Gilson não se debruça sobre o texto aristotélico propriamente dito, nem adota qualquer postura de distanciamento crítico face ao pensamento tomista. O Aristóteles essencialista de Gilson serve de contraponto para sublinhar a preocupação com o esse, a existência do ente criado. No entanto, tal interpretação parece-nos enviezada pela perspectiva escolástica, já senhora da verdade contida na tradição da fé cristã. A leitura atenta dos textos de Aristóteles realizada por diversos comentadores atuais, desvinculada da tradição escolástica vem demonstrando a existência deste viés, que condicionou durante séculos a interpretação do pensamento estagirita. Ao mesmo tempo, abrem-se novas perspectivas a partir das quais o pensamento de Aristóteles recupera uma atualidade e um vigor que o lançam muito além dos limites da interpretação mais tradicional. A tradução da expressão to ti en einai por essência obscurece o sentido de diversas passagens do texto de Aristóteles, sobretudo no livro VII da Metafísica. Não se entende o que quererá dizer Aristóteles quando, por exemplo, parece distinguir a substância (ousia) da essência (VII,4, 1030b 5 e 11,1037b 1) ou da forma (VII, 8, 1033b 5). A insatisfação com a 'tradução' de Aristóteles manifestada pela primeira vez por Heidegger cujas observações fornecem um novo ponto de partida para outros autores, entre os quais Pierre Aubenque e Rudolph Boehm que, como ele, aceitam o desafio da releitura de Aristóteles a partir da originariedade do texto, ao desenvolvimento do pensamento de Aristóteles, ao que se revela a partir dele, buscando como que a chave de leitura que abra uma nova compreensão de seu pensamento.

 

 

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