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| As potências da Linguagem
(um panorama das investigações aristotélicas sobre o logos)

por Fernando Santoro

 

            Todos nós sabemos que devemos a Aristóteles um dos pilares do conhecimento científico ocidental que é a Lógica Formal, segundo a qual podemos analisar a coerência estrutural de um discurso, antes mesmo de examinar seu conteúdo semântico. Por mais que se critiquem as limitações de sua analise extremamente dependente da estruturação, não da linguagem em geral, mas da língua grega com suas peculiaridades sintáticas, o movimento mesmo inaugurado por Aristóteles de buscar uma abstração para evidenciar uma articulação formal interna de uma frase e de várias frases entre si visando a composição de um discurso argumentativo e demonstrativo é talvez o passo mais decisivo para delimitar a cientificidade de um discurso. O passo que caracteriza definitivamente a diferença do discurso de conhecimento ocidental em face de outros discursos de conhecimento, normalmente amparados em narrativas e vivências – nunca em rigorosas demonstrações silogísticas.

            De fato, Aristóteles consuma em suas investigações lógicas, reunidas num conjunto de tratados chamado de Organon – “o instrumento” –, uma análise impar do discurso demonstrativo entendido justamente como o instrumento essencial para o conhecimento científico. Essas investigações passam por uma distinção funcional dos termos que compõem uma frase (as chamadas “categorias”), pela composição das frases que pretendem ter valor de verdade ou falsidade (ditas proposições apofânticas – ou demonstrativas), pela ordem do encadeamento de frases para alcançar uma conclusão (os famosos silogismos), até a disposição dos assuntos numa demonstração científica (os tópicos do discurso) e a descoberta das possíveis falácias que deixam com aparência verdadeira uma falsa argumentação (os diversos sofismas). Estes assuntos são respectivamente tratados nas Categorias, no Tratado da Interpretação, nos Analíticos, nos Tópicos e nas Refutações Sofísticas que compõem os seis livros do Organon. Desde o fim da Antigüidade até o fim do século XIX, estes livros constituíram os cânones do conhecimento rigorosamente científico. Mesmo a lógica simbólica contemporânea, menos fundada numa análise do discurso natural e mais dirigida pelo formalismo matemático, ainda colhe suas maiores questões nas investigações daquele filósofo que consumou o pensamento clássico grego.

            Mas Aristóteles, fundador da lógica, não foi apenas um lógico nem restringiu suas investigações sobre a linguagem no plano da instrumentalização formal do conhecimento. As investigações de Aristóteles sobre o problema fundamental da linguagem perpassam toda a sua obra, não apenas como um problema acessório ou instrumental, mas muitas vezes como o fundo orientador para vários âmbitos do conhecimento filosófico, o fundo que ao mesmo tempo sustenta o modo filosófico de investigação em geral, como também instaura uma gama variada de conhecimentos ou ciências, distintas justamente pelo que aqui denominamos de “múltiplas potências da linguagem”, a linguagem não tem apenas o poder de ser instrumento do conhecimento, ela também é um lugar privilegiado para o acontecimento e aparecimento do real, ela também é o substrato em que se instaura a humanidade do homem como ser pensante, ela também é o elo de comunicação sem o qual não se fundariam as cidades nem haveria o jogo político dos cidadãos livres, ela também é o solo constituidor da cultura que se estabelece na memória das obras de arte, sobretudo na poesia, recitada, cantada, encenada. As potências da linguagem abrem diversos domínios do real, especialmente aqueles ocupados pelo homem, que não apenas fala para conhecer, mas também para decidir, para agir, para se divertir, para se elevar – e, no fundo e no fim disso tudo, para existir. Fala! Se não és uma planta. Fala! Para existir como homem humano.

Não é de estranhar, portanto, que o Filósofo que consumou o modo grego de pensar e abriu as portas para a tradição filosófica ocidental de conhecimento e fundou grande parte das ciências que nos ocupam e nos transformam até hoje, não tenha se restringido a pensar a linguagem no âmbito da lógica, mas também da ontologia, da psicologia, da ética, da política, da retórica e da poética. A começar pelo problema primeiro da filosofia que demanda pelo sentido do Ser. O que é o ente? Pergunta o filósofo. Antes de responder, porém, já se impõe a ressalva que não dissocia o ser da linguagem: “O ente se diz de várias maneiras”. À pergunta “o que é o ente?”, se impõe a tarefa de distinguir as diversas formas em que o ente se diz. O problema do ser é antes de tudo um problema ontológico, que envolve a relação originária entre “o que é” (“to on”) e “a linguagem” (“logos”). Por isso é nas diversas formas do dizer “legein” que se pode vislumbrar o problema primeiro acerca da realidade do real. O ente se diz de várias maneiras: como sujeito ou como predicado, como essência ou como acidente, como verdadeiro ou como falso, em potência ou em ato.

            Vários são os modos de dizer o ente porque várias são as formas de se mostrar aquilo que é.

            É preciso tanto vislumbrar essa diversidade e esse movimento em que a multiplicidade do que é se presenta, como também investigar se há um fundo orientador e unificador dessa mesma multiplicidade. Por isso são duas as respostas orientadoras da investigação ontológica aristotélica. A primeira, já a vimos: que o ente se diz de várias maneiras. A segunda é a que responde diretamente à pergunta o que é o ente, mas já num enquadramento determinado, i.e., pergunta “o que é o ente enquanto ente” e responde com o que será o objeto central da investigação aristotélica: “isto é a entidade (ousia)”. O filósofo e lingüista Émile Benveniste apontou para o quanto as características da língua grega contribuíram para colocar nestes termos a pergunta fundamental sobre a constituição do real, sem entrar no mérito da discussão, é evidente pelo menos que Aristóteles está lúcido quanto ao fato que ser e dizer estão em intima relação, e se não estivessem não estaríamos nem no limbo das esperanças de poder conhecer e falar do real. Se podemos conhecer a realidade é porque podemos falar dela, e ao dizer o real como ele é apostamos que o real pode se mostrar na potência demonstrativa (ou apofântica) da linguagem. Mas se esta relação é necessária para conhecer, não é nenhuma relação que se possa conhecer como um fato do real, não é um conhecimento que se encontre pronto a verificar ou demonstrar.

            A aposta aristotélica, ou filosófica clássica, na possibilidade de conhecer o que é, está fundada na possibilidade de dizer claramente o sentido de cada diferença, de poder dizer com uma expressão não ambígua o que cada ente é. Esta possibilidade é estabelecida pelo princípio de não-contradição. Este primeiro princípio do conhecimento que aposta na possibilidade de dizer o real sem ambigüidades não é, porém, nem um princípio lógico necessário, nem algo que possa ser logicamente demonstrado, como bem o mostrou o lógico polonês do séc. XX Jan Lukasievikz. Aristóteles também sabe que, na sua condição mesma de primeiro princípio de qualquer demonstração, ele não pode ser demonstrado sem cair no círculo vicioso da petição de princípio. Mas para Aristóteles, não só este princípio é necessário como de certa maneira pode ser “demonstrado” pelo discurso. Contudo, certamente não é de ordem lógica esta necessidade, nem a demonstração se faz segundo o modelo que Aristóteles mesmo descreve como demonstração científica nos dois tratados chamados Analíticos, do Organon. Estaria o filósofo fundando o mais rigoroso dos seus princípios fora dos rigores que ele mesmo estabelece para o conhecimento? Não, trata-se, na impotência da capacidade lógica demonstrativa de dar a si mesma o seu próprio princípio, de recorrer a outra das várias potências da linguagem.

            Como se estivesse não mais numa lição do liceu, mas no púlpito de um tribunal ou no palco de uma assembléia, é preciso recorrer não à demonstração stricto sensu – mas ao logos dos oradores e dos sofistas, à dissuasão por refutação. Assim o filósofo vai chamar à arena do discurso aqueles que lhe seriam os principais adversários de uma tal posição de princípio, posição que já não está mais no âmbito da lógica, mas da ética e da política, onde se delibera sobre o que deve ser, não por necessidade natural, mas por conveniência consensual. Assim, vai o filósofo invocar seus contendores, dizendo: Fale, quem não for planta; e desta primeira fala do adversário fictício extrairá sua “demonstração por refutação”. A refutação se fará, seja mostrando que o outro filósofo diz, a despeito de calar-se, como Crátilo, ou não diz exatamente o que sustenta seu pensamento, como Heráclito, ou não pensa segundo dizem suas ações, como Protágoras, ou porque se engraçam a dizer qualquer coisa, estes nem se dá o trabalho de nomear. Já não se trata de demonstrar cientificamente, mas de entrar na disputa mesma que embala as contendas sofísticas de linguagem.

            Neste caso, os princípios da refutação já não são premissas, mas ações e disposições frente aos adversários, escolha de lugares comuns da argumentação (topoi), e recurso a argumentações e evidências pragmáticas (entimemas). Neste caso, a potência requerida do discurso é a potência retórica persuasiva e dissuasiva. Mas, bem ancorado na tradição dialética grega, e bom discípulo de Platão, Aristóteles não apenas sabe recorrer ao uso retórico do discurso, quando solicitado; também pôs a arte retórica entre suas prioridades de investigação – como mais uma potência da linguagem. Sua obra Arte Retórica, junto com as lições de Platão e Górgias e os diálogos de Cícero, constituem a base clássica da retórica antiga. Filósofos contemporâneos como Perelmann e Habermas tem ressaltado sua importância e a têm reabilitado como a potência da razão, ou da linguagem, pela qual se pode exercer o jogo político entre homens livres. No domínio da ação livre já não cabe demonstrar o que não pode ser de outro modo e que constitui objeto de ciência. No jogo político delibera-se sobre aquilo que pode sim ser de outro jeito, sobre o que é aberto entre as possibilidades da liberdade, e por isso pode e às vezes deve ser objeto de deliberação.

            Lukasievicz vislumbrou o alcance ético do princípio de não-contradição, quando apontou para sua utilidade como meio para distinguir os atos morais de dizer a verdade e a mentira. Mas faltou-lhe perceber que todo ato de fundação do conhecimento, de instauração de um princípio para obter a verdade, é sempre um ato moral, uma posição de valores que não são dados como o são as matas, as penhas e as nuvens, que precisam da linguagem e da vontade de determinar de algum modo o real. Afinal, o conhecimento também é uma ação humana com todas as implicações de uma tal ação: vontade, interesse, perspectiva, limitação, finitude...

            Antes de ser instrumento de conhecimento, a linguagem também é desejo, ordem, expressão dos valores, das intenções, das ações humanas. A linguagem não exprime apenas como algo é; que a água é transparente, também a linguagem pede a água, nega a água, ordena que se a derrame. A linguagem no âmbito da retórica interfere e transforma os homens e o ambiente ao seu redor. A linguagem também tem a potência da ação; e domina a ação que se faz comunitariamente, a ação política.

            Mas as potências da linguagem ainda vão além: pela linguagem não apenas conhecemos o mundo e agimos como homens livres, pensantes e políticos. A linguagem é também o substrato que nos forma, que nos produz como homens que são seres pensantes, seres imersos em culturas, em línguas, em sentidos, sentimentos, idéias. Somos formados, no que constitui nosso caráter humano, de palavras e por palavras. Ouvimos, desde que nos entendemos por gente, as fábulas que nos ensinam a avaliar o bem e o mal, as histórias que nos situam numa história e numa região. Aprendemos a perceber e a gostar e não gostar de cada coisa que nos aparece e para a qual temos um nome e uma sentença, muitas vezes uma história e às vezes – quando a palavra e a coisa são muito importantes – mais de uma história, mais de uma cena que se perpetuam em nossa memória seja num verso de que gostamos ou numa cena que podemos contar.

            Na constituição desse ente que vive e convive no ambiente da linguagem, na constituição de nossa humanidade, se efetiva a potência mais gratuita e mais poderosa da linguagem que é a potência de criar coisas, sentimentos e mundos – a potência poética da linguagem. Potência que a filosofia primeiro viu como um perigo porque guardava também o poder de criar ilusões e ficções e de criar e dar vida ao que não tem ser. Mas que apareceu a Aristóteles como mais um campo da linguagem digno de análise, especialmente onde essa potência liberaria suas disposições mais belas, mais fortes, mais expressivas: na epopéia e na representação teatral – que constituem os objetos de análise de seu tratado sobre a arte Poética. A poesia, em suas diversas modalidades de revelação pode encantar os homens com belas aparências deturpadas do real; mas também desempenha a função educadora e pode revelar o mundo e mostrar suas múltiplas diferenças. Ela mais do que qualquer outra força da linguagem tem o poder de elevar o espírito aos seus mais altos cumes e abrir os olhos dos homens para o grande espetáculo da existência – cantando os mais altos valores dos heróis que atuam nas sagas, encenando as trágicas ações dos homens que foram subjugados pelo destino, e liberando-nos o riso ante a evidência de nossas baixezas.

            Tantas e tais são as potências da linguagem sobre as quais debruçou-se o Filósofo que talvez mais tenha aberto nossos olhos para estas questões que perpassam as palavras.

            Tantas são também as potências sobre as quais hoje ainda precisamos refletir, porque são as potências que, como humanos, sempre havemos de exercer.

               

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